As janelas do castelo estavam abertas, escancaradas ao público de modo que era possível ver dentro do próprio reino.
Nos recônditos do palácio começava um diálogo incomum entre a memória e o coração, no mais profundo do pensamento humano, no âmago quase inimaginável e inabitável da incompreensibilidade do complexo intelecto do eu.
— Sim! É ela, e isso é inacreditável! É o beija-flor! Sim, aquela mesma de outrora, ela veio ao nosso castelo desfilando toda a sua beleza, com grande esplendor e formosura que lhe cabe, como das vezes anteriores, pousou na janela da alma sem a percebermos, devedoras é espantoso.
— O que fizeste a respeito, nobre senhor? O que se diz em todo o reino é que ela não aparece já há muitas primaveras, e a propósito, se realmente o que dissestes for verdade, qual o motivo que a trouxe novamente para os nossos domínios, e, principalmente! Como pode tal façanha sem que eu não a tenhamos notado? Uma vez que nada me escapa...
— Caríssimo amigo, essa história não está muito bem contada, existem algumas variáveis não consideradas nessa complicada equação de sentimentos nus ...
— O que não está muito bem contado nesse, como você mesmo disse, equação de sentimentos nus? Está mais para um mosaico de sentimentos nus. Escondes algo de mim nobre senhor? Justo eu. E que variáveis são essas dos sentimentos nus no seio das vontades e desejos humanos?
— Perdoe-me amigo… Perdoe por não ter lhe contado tudo antes.
— Como podes fazer tal! O que escondes de tão valioso deste que a tanto lhe serve?
— É o beija-flor... Não o reconhece? Aquela mesma de outrora, lembra-te? Frequentemente ela aparece no domínio da torre, aos olhares dos súditos do castelo, tão desavisados, e do próprio rei que é o meu pai - ela é apenas uma ave voando desavisada nos entornos do castelo, pousando aqui e acolá. Essa ave tão ligeira, é, e sempre será ave, não se engane quanto a isso. Difícil explicar eu sei, um dia você vai entender.
— Escondestes de mim esse segredo muitíssimo bem, justamente eu, o seu súdito mais leal, como podes?
— Ainda acreditas em mim?
— Jamais duvidei de ti meu príncipe, jamais... Tu sabes disso, desde tenra idade sempre acreditei em cada uma das tuas histórias e as guardei a sete chaves, agora que és príncipe, eu continuo a acreditar ainda mais, embora, eu seja o único a crer nestes domínios.
— Eu sei meu amigo… Eu sei... Mas tudo tem o tempo certo, em breve lhe explico tudo quanto aconteceu.
— Por favor, meu jovem príncipe! Conte-me o que aconteceu, conte-me agora mesmo?
— Tudo bem… Tudo bem, eu lhe conto.
— Obrigado jovem príncipe, muitíssimo obrigado.
— Era novembro, eu bem me lembro, o jardim banhado em ondas de luz rodopiantes, o luar prateado por sobre a mata densa, os seres da noite fazendo serenata. Eu bem me lembro daquele olhar reluzente e fugitivo, daqueles toques quentes despertando paixão, do som daqueles lábios na pronúncia de cada palavra. Eu bem me lembro daquele nosso último novembro, quando o rei então nos flagrou no primeiro beijo. Proibiu-me de vê-la enquanto vivesse e aprisionou-me na torre deste peito. Foi então, caro amigo memória, que as fadas do reino encantado, a meu pedido, movidas por compaixão ao ver meu sofrimento por esse amor tão impossível, com poderosa magia, em beija-flor a transformou. Vê, essa ave tão alegre, na verdade é ela, sempre foi o meu único e grande amor impossível.
— Santo Deus! Então esse é o verdadeiro ocorrido… Pensávamos que ela tivesse sido levada pelos ladrões do reino esquecimento ou coisa semelhante. Nunca mais a vimos, o reino do esquecimento é completamente inacessível para nós, pensávamos que ela estivesse por lá.
— Para todos os efeitos, amigo memória, ela foi levada, contudo, peço-te, fiel companheiro, que guardes este meu segredo enquanto vivermos. Não o reveles a ninguém, principalmente a razão, sempre contraditória ao que eu tanto desejo, sempre fazendo oposição a tudo que entendo por agradável, nunca na história desse reino concordamos em alguma questão.
— Eu prometo que vou guardar esse segredo com a minha própria vida, ele estará salvo com a memória em seus recônditos mais ocultos, somente tu terás acesso.
— Obrigado amigo, pode se retirar, desejo ficar à sós.
— Sim nobre coração, como desejares, este teu amigo memória estará sempre à disposição para lhe ajudar no que for.
— Os dias são ruins, caríssimo amigo coração, e como todos os outros, nada tenho a fazer do que observar tudo em silêncio. Os pensamentos do coração são como o vento, como a brisa que sopra vindo do norte, ou uma sombra passageira. O beija-flor, o meu beija-flor, o meu único e grande amor, aquele mesmo de outrora, de todas as minhas primaveras, ainda não sabe de todos os motivos que me levou ao cárcere dentro de mim mesmo, pretendo, se possível for, jamais revelar tal segredo. Enquanto isso, a solidão me cabe perfeitamente na companhia deste peito. Podes sair agora amigo...
— Como quiser.
O castelo forte fechou as janelas da alma, passou as mãos sobre os cabelos, coçou a cabeça, não compreendo os mistérios que passavam dentro do reino oculto de seu próprio eu.
Observou uma vez mais a visão daquela noite, saiu cabisbaixo sem dizer uma única palavra, porém, escondendo todas as impressões que teve da moça que há tanto conhecia e a muito amava, ela, fugitiva noite adentro, ele, fugitivo dos próprios sentimentos noite afora, dentro de si, o mosaico de sentimentos nus.
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