domingo, 8 de setembro de 2024

CRÔNICA DE DOMINGO.

 


    UM PÁSSARO EM MINHA JANELA.


    Um pássaro pousou em minha janela.

    Quisera eu ter a paz e a tranquilidade da pequena ave que pousou em minha janela na tarde desta bela sexta-feira. Quisera eu ter as suas asas e voar livremente pelo imenso azul celeste, entre fogosas nuvens, brincar alegremente, ver o mundo lá de cima, ter a liberdade brincando com o vento em minhas asas. No entanto, é dolorida a realidade em que percebo não ser tal como o pássaro, de não ter asas, de nunca ter sonhos, de nunca poder voar, de não ser livre. Talvez a imaginação me crie asas, ainda que essas, antes mesmo da existência tenham sido cortadas pelos homens, ainda que sejam as asas de Ícaro.

     Um pássaro pousou em minha janela.

     Quisera eu ser esse pássaro de penas reluzentes, com o bico afinado, cantando suave e harmonioso — eu não sou este pássaro, pelo contrário, eu sou o poeta da melancolia e tristeza, bêbado de solidão no meio da multidão, desajeitado com as palavras, tropeçando vez ou outra aqui e ali em alguma desavisada rima que passa, acenando de uma janela triste. A liberdade que eu sonhei, imaginei, voou nas asas do pássaro que estava preso na minha imaginação, estava preso... Agora não mais.

    Um pássaro pousou em minha janela.

   Outro dia veio em minha janela esse pássaro diferente de todos os outros que já pousou por outras vezes. Esse tinha as asas coloridas, mais longas, com o bico também alongado. Contudo, a sua canção parecia a viva entonação de meus versos tristes e melancólicos. Não consegui determinar que ave era aquela, nem entender a sonoridade quase fúnebre de seu canto. Sei que ela causou-me grande admiração, medo e espanto. Uma vez mais faço-me repetir… Quisera eu ser aquela ave, ou qualquer outra a propósito, conquanto que eu tenha asas e possa voar, que tenha a liberdade novamente. Liberdade essa roubada por mercenários do pensamento, da ideologia de que não teremos nada e seremos felizes... Eu não sou esse pássaro, talvez no passado eu tenha sido, porém, até mesmo as lembranças do meu passado foram roubadas de mim.

   Um pássaro pousou em minha janela.

   Quisera eu poder ser todos os pássaros do mundo, pelo menos um de cada nação 

— que fosse apenas um dia — e ter a mais bela canção, ainda que não lírica. Quisera eu ser esses pássaros todos e ganhar todas as nuvens e todas as liberdades em cada céu de cada lugar, e poder voar sempre mais alto possível até quase desmaiar, e ter a liberdade e a solidão entre minhas asas. 

   Quisera eu… 

   Ser apenas uma vez na vida, um pássaro qualquer. Entretanto, me oferecem as asas de Ícaro e um céu terrivelmente ensolarado, me vendem a ideia de que eu posso sim voar perto do sol, que o mito de Ícaro é uma ilusão, afinal, não existem perigos. Os mercenários do pensamento plantam nas mentes essas e outras ideologias mentirosas. Não sou um pássaro, aliás, não somos pássaros, a única certeza de que tenho é a de estar preso numa gaiola, suspensa no mundo, a porta está aberta, ao lado, ( as asas de Ícaro ). A falsa sensação de liberdade chamando do lado de fora.

segunda-feira, 2 de setembro de 2024

A TIRANIA DO RELÓGIO.

 



Dane gostava de acordar cedo, antes do nascer do sol, hábito herdado dos pais e avós. O céu ainda estava escuro quando ela despertou, não quis perder tempo, ela odiava desperdiçar o tempo, embora ainda com sono, evitou o último cochilo. Tratou de levantar-se de um só pulo, como era de costume em todas as manhãs. A primeira coisa que fazia ao se levantar era abrir a janela do quarto, que dava de fundo para o quintal, espaçoso por sinal, ela abria a janela apenas dois palmos nada mais, nada a menos. O silêncio absoluto era interrompido pela algazarra dos pássaros no pé de cereja. O céu começava a ser invadido por pálidos tons de um alaranjado fraquinho se intensificando aos poucos, mudando de tom cintilando no horizonte, era o sol timidamente acenando do outro lado do mundo, pronto para romper a escuridão e dar início aquele novo dia. Dane ficava por alguns minutos olhando o horizonte pelo pequeno espaço da janela, contemplando o silêncio, que logo mais seria maculando por uma manhã barulhenta e de muita correria que era às segundas-feiras. A cidade de Sorocaba era muito diferente do interior Mineiro de onde ela veio. A megalópole interiorana caminhava a passos largos para se tornar uma cópia perfeita com todas as imperfeições que trazia a Pauliceia desvairada onde moravam a maioria dos parentes. Dane esticou-se toda, espreguiçando-se, havia muito a ser feito antes de sair para o trabalho. A segunda coisa era arrumar a sua cama, embora morasse sozinha, podendo dar-se ao luxo de deixá-la desarrumada, a exemplo das amigas, mas, ela não tinha esse costume, aliás, Dane odiava desordens seja qual fosse ela. Dane gostava de tudo em seu devido lugar, gostava de arrumação, limpeza, ordem, às vezes, exagerava demais. Antes mesmo de ir para o banheiro, dobrava o cobertor, lençois, guardava-os e estendia outro lençol, um dos muitos que ganhou da mãe, tudo tinha que ser perfeito, milimetricamente ajustado. Somente depois é que ela ia para o banheiro. Sempre nessa ordem e no mesmo horário, não podia atrasar, ela odiava sair da rotina ou dos horários que ela mesma estabeleceu para sua vida.

       No banho não era diferente.

       Havia uma toalha diferente para cada dia, a toalha rosa era da segunda-feira, sabonetes, shampoo, condicionador, tudo em seu lugar, na ordem e posição que ela estabelecia, Dani não suportava que alguma coisa ficava fora do lugar, nem mesmo um frasco de shampoo. Os banhos em geral não eram demorados, somente quando ela queria se tocar, dar liberdade aos pensamentos e devaneios mais devassos, sem companheiro ou namorados, sentia suas necessidades e as deliberava na solidão de seus banhos, tudo dentro de seus rígidos controles mentais. Até mesmo esses momentos tinham que obedecer a tirania do relógio.

           Terminado o banho, nada além de vinte minutos nesses dias específicos, enxugava-se, trocava-se, recolhia as roupas e toalhas e as deixava na máquina de lavar, para quando voltasse do trabalho. O banheiro deveria ser enxugado, limpo, perfumado, tudo antes de sair. A última coisa a ser feita antes de ir para o ponto de ônibus era separar o que seria feito no jantar. Arroz, mistura, salada, enfim. O que deveria ser feito a noite era separado em medidas pequenas e colocadas na geladeira antes de sair para o trabalho. Refeição para uma única vez, não podendo sobrar nada, nem para o outro dia, salvo finais de semana em que ela não almoçava no trabalho. Era o costume dela, funcionando perfeitamente, com uma leve piora depois de mudar para Sorocaba e morar sozinha, embora para as colegas que a conheciam achar o seu "TOC", algo fora do normal, diziam às amigas que o controle do próprio tempo algo a beira do doentio.

    Tudo pronto, chaves no bolso, bolsa, carteira, crachá. Confere e confere se tudo está fechado, portas e janelas, confere novamente a bolsa, não havia esquecido nada.

    O ponto de ônibus onde ela deveria estar era na avenida Itavuvu, coisa de dez minutos de caminhada, bastava seguir reto até o final da rua e atravessar a direita. Dane abria o portão que dava acesso a rua, olhava para os dois lados, sempre desconfiada, com medo. Na rua, as mesmas pessoas de sempre, alguns alunos indo para escola, outras mulheres e homens em direção aos seus trabalhos, alguns de carro, outros, se dirigindo para o mesmo ponto de ônibus que ela.  Depois de olhar várias vezes para os dois lados, fechava o portão e caminhava cerca de dez ou vinte metros subindo a rua. O ponto de ônibus era na avenida Itavuvu, ao final da rua, bastava virar e atravessar pela Fru Fru e pronto. Ela parava sempre pelo mesmo lugar, em frente a casa da do Cleide, parava por alguns segundos, desconfiada de que esqueceu de algo, conferia bolsa, tudo no lugar. Não conseguia dar um passo a mais se não voltasse e conferisse se havia fechado o portão. Era sempre a mesma coisa, todos os dias da semana. Havia dias em que ela estava no ponto e voltava para conferir se tinha fechado o portão de casa. Se caso ela embarcasse sem retornar para conferir o portão, pronto, o seu dia era complicado, estressante e desajustado, dificilmente conseguia se concentrar no trabalho. As amigas insistiram para Dane marcar um médico e retomar o tratamento, ela era tão teimosa quanto controladora de si mesma.

       Finalmente, depois de voltar, conferir o portão, retornou tranquilamente para o ponto de ônibus, chegou com tempo de sobra. 

        Haviam poucas pessoas com ela, duas mulheres e um rapaz. Ela pegou o ônibus que vinha do Vitória régia sentido rodoviária. Era a linha mais rápida que se utilizava do BRT.

         Dane trabalhava em uma biblioteca no centro da cidade, na verdade uma sebo com ares de biblioteca, o maior da cidade, não ganhava muito, porém, era o tipo de trabalho que sempre desejou. Amante de livros, lutou para conseguir uma vaga naquele emprego. O serviço era tranquilo, catalogação dos títulos, organização dos livros novos que chegavam, indicação de obras para os clientes. Junto com ela havia outras duas meninas no período da manhã, e outras duas que ficariam  até o fechamento. O horário de Dane era das sete às três, com uma hora de almoço. 

           O relógio de pulso marcava seis e dezessete, o horário que o ônibus deveria passar era seis e quinze, estava atrasado, o que angustiava a moça, deixando-a inquieta. Seis e dezoito foi o horário em que o ônibus parou no ponto, a cara fechada de Dane era evidente, para piorar, o seu lugar preferido de sentar estava ocupado, próximo da porta de saída do meio do veículo. No lugar, estavam um casal de namorados, a vontade de Dane era de arrancá-los aos tapas. Irritadíssima, mesmo com outros lugares sobrando, preferiu ficar de pé, próximo a porta. Dane permaneceu quieta todo o trajeto. Não falou uma única palavra com ninguém, nem mesmo um simples bom dia. Era inadmissível ter o seu lugar tomado desse jeito, pensava. 

          O ônibus seguiu o seu caminho. Hora parando e entrando uma multidão, parando e descendo outra maior. Dane permaneceu no mesmo lugar, sem falar com ninguém, sem arredar o pé. Saiu somente no último ponto antes do ônibus entrar no terminal. Nem bem parou no ponto e ela desceu apressada rumo ao trabalho, que era relativamente perto.

    Dane segue o caminho de sempre, nunca mudou o seu trajeto desde que iniciou na sebo. O caminho mais curto seria passando pela rua sete sentido à matriz, depois subir a rua dos bancos. Porém, Dane preferia o calçadão das lojas, subindo a segunda direita, que também leva a matriz, no entanto, esse caminho não era o melhor. Dane demorava exatamente cinco minutos a mais, contudo, mudar de trajeto significava mudar sua rotina, o que no momento estava fora de cogitação.

      Ela odiava mudar seus horários e rotas, era um hábito difícil de se desfazer. No sebo não era diferente. Dane lutava contra o seu transtorno compulsivo, havia dias em que tudo transcorria dentro de uma certa normalidade, o que lhe era favorável. Bastava qualquer coisa fora do seu padrão habitual, ou que lhe fizesse sair da rotina para tudo se tornar um caos completo.

       Dane chegou dez minutos antes da loja abrir, exatamente dez minutos, o que era perfeito, maravilhoso, significava que o seu dia tinha tudo para começar bem. Sem atrasos. O único inconveniente era o fato de não ter conseguido sentar no seu lugar preferido no ônibus. Enquanto a loja não abria, Dane ficou observando as pessoas que passavam, todas apressadas, indiferentes ao que se passava ao derredor. Sorocaba, tão diferente da sua antiga e pacata cidadezinha, onde todos se conheciam. A loja abriu exatamente no horário, era outro motivo de comemoração, seu João, o dono do local, dificilmente abria a loja no horário. Dane era a primeira a chegar, ficava no caixa enquanto as meninas não chegavam. A rotina, massacrante para as amigas, tão confortável para ela. Josiane era a segunda a aparecer, coisa de meia hora depois, assumia a caixa e deixava Dane livre para fazer o que mais gostava, organizar os livros nos devidos lugares, ajudar um e outro cliente em alguma dúvida, assim ela passava o dia. Se nada acontecesse para mudar sua rotina, tudo seria perfeito.

       Não demorou e os primeiros clientes apareceram.

        Josiane era a mais requisitada no caso de dúvidas, por ficar na linha de frente da loja, os clientes a procuravam na maior parte das vezes. Dane estrategicamente pulava de corredor em corredor, evitando o contato com os clientes o máximo que podia. 

        Na rotina de arrumar, sobrava-lhe tempo de sobra para folhear os livros novos. Naquela manhã havia uma pilha enorme. A maioria de semi novos. Poesia, Romances, contos. Dane gostava dos calhamaços, naquela manhã havia vários entre as pilhas. "O homem sem qualidades", "As benevolentes", "Crime e castigo ", " Guerra e paz", na maioria livros em perfeito estado, praticamente novos, possibilitando um preço um pouco acima dos demais. O fluxo da loja era bom, os preços acessíveis, seu João tinha o coração mole, sempre dando descontos generosos para os clientes. Tal atitude o fazia conhecido e procurado, o que lhe parecia perder nos descontos ganhava em número de vendas e clientes.

        O dia transcorreu dentro da normalidade.

        A bela jovem de olhos azuis atendeu tão somente dois clientes. Um moço que procurava um livro do Machado de Assis, e outro que procurava um dos títulos da Mariana Salomão Carrara. Ambos conseguiram os livros e ótimos descontos.

        Seu João, conhecendo que sua funcionária tinha suas neuras com o horário, a liberava dez minutos antes, não importasse a situação da loja. Dez minutos antes era perfeito para ela, saindo sem pressa para o terminal. Naquela segunda-feira, até o presente momento, tudo estava perfeito demais, o que deixou a moça apreensiva, querendo chegar logo em casa e consagrar a perfeição de um ciclo inteiro sem atrasos, como costumava chamar.

   Dane saiu apressada, nem bem guardou o livro que levaria aquele mês e atravessou a rua antes do sinal fechar. Uma das exigências de seu João é que todos os funcionários lessem pelo menos um livro por mês, caso conseguissem, recebiam bonificação. Dane era uma leitora compulsiva, faltando apenas quatro meses para finalizar o ano, ela já havia lido quarenta e nove títulos. Enquanto as amigas lutavam para manter a meta exigida. 

     O livro que ela estava levando era "Lolita", de Vladimir Nabokov. O livro que havia lido anteriormente era, "O médico de homens e almas", da Inglesa Taylor Caldwell. Um calhamaço de quase setecentas páginas.

      O centro da cidade estava terrivelmente movimentado. Carros, engarrafamento, buzinas, pessoas apressadas, uma algazarra incomum, ela ainda não estava plenamente habituada com o frenesi da cidade grande. São Pedro dos Ferros, lugar onde morava em Minas, era um ovo em comparação com Sorocaba. Outro detalhe irritante para ela eram os candidatos a vereadores espalhados pela cidade. Como o período eleitoral se aproximava, candidatos eram o que não faltava, aparecendo aos montes, de todos os lados, sempre com a mesma conversa mole, o papo de sempre que vai fazer isso e aquilo se for eleito. Dane sabia bem que as mesmas caras e sorrisos que se faziam presentes desaparecem assim que terminam as eleições, em São Pedro dos Ferros não era diferente de Sorocaba.

          Não demorou e ela chegou ao terminal.

          Como de sempre, lotado. O que resultaria em atrasos, o de imediato fez o seu semblante transfigurar-se, ignorando a moça que lhe chamava para uma conversa rápida... Os famosos "santinhos", nas mãos, por certo, mais uma candidata. Dane deu de ombros, entrou apressada pela catraca do terminal. Visualizou o ônibus parado, Vitória Régia, linha 140, havia estacionado no ponto naquele momento. Dane atravessou pelo terminal aos tropeços, queria garantir o seu lugar favorito, próximo a saída do meio do veículo. O esforço não lhe valeu muito, novamente, ônibus lotado, ficou de pé, cara emburrada. No pensamento a certeza de que o dia só poderia dar naquilo, que para ela era um desastre. Apesar que, nas segundas, raramente ela conseguia o seu lugar preferido ou os horários certos. Alguma coisa sempre dava errado, dessa vez não foi horário, não por enquanto, por sorte o trânsito estava fluindo normalmente. 

          No ônibus, os mesmos rostos de sempre.

          Faces cansadas, olhos grudados na tela do celular, ninguém queria conversar com ninguém, para ela, perfeito, assim poderia chegar em casa sem ter que dialogar com ninguém. 

            Entre solavancos e balanços do veículo, os pensamentos de Dane se consumiam no que ela ainda tinha a fazer. Indecisa se colocaria as roupas para bater primeiro ou se faria a janta ou tomaria banho. Sem ninguém para ajudar, tudo era por sua conta. Nesses momentos ela se arrependia momentaneamente por não ter ninguém, apenas momentaneamente, só em imaginar outra pessoa, mais roupas para lavar, comida por fazer, todo trabalho dobrado, por sua única conta, sem dizer na casa para arrumar, tudo sozinha, enquanto o possível companheiro, certamente, com os pés esticados no sofá... Só em pensar em tais coisas Dane sentia o rosto avermelhar-se novamente e a pressão arterial subir. Tão logo, ao soar de uma buzina do lado de fora, a bela moça voltou a si, saindo do seu devaneio, faltando apenas um ponto para descer. Por pouco não passaria do ponto.

                 A tirania do relógio ditando o curso frenético de sua vida, faltava dez minutos para as seis. Ela teria que correr se quisesse chegar em casa cinco para a seis. Tal atraso logo na segunda, era inadmissível, era a tirania do relógio.


CRÔNICA DE DOMINGO.

      UM PÁSSARO EM MINHA JANELA.     Um pássaro pousou em minha janela.     Quisera eu ter a paz e a tranquilidade da pequena ave que pouso...